Por dentro do monastério de monges tibetanos que tentam resistir à China
05/07/2025
(Foto: Reprodução) A BBC conversou com tibetanos no momento em que seu líder espiritual exilado, o Dalai Lama, completa 90 anos. Monges tibetanos na oração matinal
BBC
Envolto em um manto carmesim, com as contas de oração passando ritmicamente por seus dedos, o monge caminha em nossa direção.
É uma decisão arriscada.
Estamos sendo seguidos por oito homens não identificados. Até mesmo dizer algumas palavras para nossa equipe de reportagem em público poderia colocá-lo em apuros.
Mas ele parece disposto a correr o risco. "As coisas aqui não estão boas para nós", diz ele calmamente.
A BBC visitou o mosteiro de Kirti, em Aba, às vésperas de o Dalai Lama completar 90 anos
Xiqing Wang/ BBC
Este monastério na província de Sichuan, no sudoeste da China, tem sido o centro da resistência tibetana há décadas — o mundo tomou conhecimento dele no fim dos anos 2000, quando tibetanos atearam fogo aos próprios corpos no local em protesto contra o governo chinês. Quase duas décadas depois, o mosteiro de Kirti ainda preocupa Pequim.
Uma delegacia de polícia foi construída logo na entrada principal. Ela fica ao lado de uma pequena sala escura repleta de rodas de oração que rangem ao girar. Câmeras de vigilância em postes de aço cercam o complexo, monitorando cada canto.
"Eles não têm um bom coração; todos podem ver isso", acrescenta o monge. Em seguida, vem um alerta. "Tenham cuidado, estão observando vocês."
Quando os homens que estavam nos seguindo vêm correndo, o monge se afasta.
Um monge tibetano durante as orações matinais no mosteiro de Kirti
Xiqing Wang/ BBC
"Eles" são o Partido Comunista da China, que governa mais de seis milhões de tibetanos há quase 75 anos, desde que anexou a região em 1950.
A China investiu muito na região, construindo novas estradas e ferrovias para impulsionar o turismo e integrá-la ao restante do país. Os tibetanos que fugiram afirmam que o desenvolvimento econômico também trouxe mais tropas e autoridades, reduzindo sua fé e liberdade.
Pequim considera o Tibete como parte integrante da China. O país rotulou o líder espiritual exilado do Tibete, o Dalai Lama, como separatista, e aqueles que exibem sua imagem ou manifestam apoio público a ele podem acabar atrás das grades.
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Ainda assim, alguns em Aba, ou Ngaba em tibetano, que abriga o mosteiro de Kirti, tomaram medidas extremas para desafiar essas restrições.
As rodas de oração retratam cenas da vida de Buda dentro do monastério
Xiqing Wang/ BBC
A cidade fica fora do que a China chama de Região Autônoma do Tibete (TAR, na sigla em inglês), criada em 1965, e que compreende cerca de metade do planalto tibetano. Mas milhões de tibetanos vivem fora da TAR, e consideram o restante como parte de sua terra natal.
Aba tem desempenhado um papel crucial há muito tempo. Os protestos eclodiram aqui durante o levante tibetano de 2008 depois que, segundo alguns relatos, um monge segurou uma foto do Dalai Lama dentro do mosteiro de Kirti. A situação acabou se transformando em um motim, e as tropas chinesas abriram fogo. Pelo menos 18 tibetanos foram mortos nesta pequena cidade.
À medida que o Tibete se levantava em protesto, muitas vezes as manifestações se transformavam em violentos confrontos com paramilitares chineses. Pequim afirma que 22 pessoas foram mortas, enquanto os grupos tibetanos no exílio estimam o número em cerca de 200.
Nos anos que se seguiram, houve mais de 150 autoimolações pedindo o retorno do Dalai Lama — a maioria delas aconteceu em Aba ou nos arredores. Isso fez com que a rua principal ganhasse um apelido sombrio: corredor dos mártires.
Desde então, a China intensificou a repressão, tornando quase impossível determinar o que está acontecendo no Tibete ou nas áreas tibetanas. As informações que surgem vêm daqueles que fugiram para o exterior, ou do governo no exílio, na Índia.
Os monastérios tibetanos são vigiados de perto devido à influência que ainda exercem
Xiqing Wang/ BBC
Para saber um pouco mais, voltamos ao monastério no dia seguinte, antes do amanhecer. Passamos despercebidos por nossos "supervisores", e caminhamos de volta a Aba para as orações matinais.
Os monges se reuniram com seus chapéus amarelos, símbolo da escola Gelug de budismo. Os cânticos baixos e sonoros ressoavam pelo salão, enquanto a fumaça do ritual pairava no ar úmido.
Cerca de 30 homens e mulheres locais, a maioria com trajes tibetanos tradicionais de manga comprida, se sentaram com as pernas cruzadas até que um pequeno sino tocou para encerrar a oração.
"O governo chinês envenenou o ar do Tibete. Não é um bom governo", nos disse um monge.
"Nós, tibetanos, não temos direitos humanos básicos. O governo chinês continua a nos oprimir e perseguir. Não é um governo que serve ao povo."
Ele não deu detalhes, e nossas conversas foram breves para evitar sermos descobertos. Ainda assim, é raro ouvir essas vozes.
A questão do futuro do Tibete ganhou premência com o aniversário de 90 anos do Dalai Lama nesta semana. Centenas de seguidores têm se reunido na cidade indiana de Dharamshala para homenageá-lo. Ele anunciou o tão esperado plano de sucessão na quarta-feira (2/7), reafirmando o que já havia dito antes: o próximo Dalai Lama seria escolhido após sua morte.
Os tibetanos de todo o mundo reagiram — com alívio, dúvida ou ansiedade —, mas não aqueles na terra natal do Dalai Lama, onde até mesmo sussurrar seu nome é proibido.
Pequim falou em alto e bom som: a próxima reencarnação do Dalai Lama vai ser na China, com a aprovação do Partido Comunista chinês. O Tibete, no entanto, permaneceu em silêncio.
"É assim que as coisas são", nos disse o monge. "Essa é a realidade."
Dois mundos sob um único céu
A caminho de Aba, na borda do planalto tibetano, onde a luz do Sol é particularmente forte devido à alta altitude
Xiqing Wang/ BBC
A estrada para Aba serpenteia lentamente por quase 500 quilômetros a partir da capital de Sichuan, Chengdu.
Ela passa pelos picos cobertos de neve do Monte Siguniang antes de chegar às pradarias na borda do planalto tibetano.
Monastério de Langcuo Ma
Xiqing Wang/ BBC
Os telhados dourados e inclinados dos templos budistas brilham a cada poucos quilômetros, refletindo a luz do Sol especialmente intensa. É o chamado "teto do mundo", onde o tráfego dá lugar a pastores de iaques a cavalo, que assobiam para o rebanho relutante e grunhindo, enquanto as águias sobrevoam acima.
Há dois mundos sob esse céu do Himalaia, onde a tradição e a fé colidiram com a demanda do Partido por unidade e controle.
Há muito tempo, a China afirma que os tibetanos são livres para praticar sua fé. Mas essa fé também é a fonte de uma identidade secular, que os grupos de direitos humanos dizem que Pequim está corroendo lentamente.
Eles afirmam que inúmeros tibetanos foram detidos por realizar protestos pacíficos, promover a língua tibetana ou até mesmo possuir um retrato do Dalai Lama.
Muitos tibetanos, incluindo alguns com quem conversamos no mosteiro de Kirti, estão preocupados com as novas leis que regem a educação das crianças tibetanas.
Todos os menores de 18 anos precisam agora frequentar escolas estatais chinesas e aprender mandarim. Eles não podem estudar as escrituras budistas em aulas em monastérios até completar 18 anos — e devem "amar o país e a religião, e seguir as leis e regulamentações nacionais".
Esta é uma grande mudança para uma comunidade em que os monges eram frequentemente recrutados quando crianças, e os monastérios funcionavam como escolas para a maioria dos meninos.
A bandeira nacional chinesa acima do mosteiro de Kirti
Xiqing Wang/ BBC
"Uma das instituições budistas próximas foi demolida pelo governo há alguns meses", nos contou um monge na faixa dos 60 anos, em Aba, debaixo de um guarda-chuva, enquanto caminhava para as orações na chuva.
"Era uma escola de pregação", acrescentou ele, emocionado.
As novas regras seguem uma ordem de 2021 para que todas as escolas em áreas tibetanas, inclusive os jardins de infância, ensinem no idioma chinês. Pequim diz que isso oferece às crianças tibetanas uma chance melhor de conseguir emprego em um país onde o idioma principal é o mandarim.
Mas essas regulamentações podem ter um "efeito profundo" no futuro do budismo tibetano, de acordo com o renomado acadêmico Robert Barnett.
"Estamos caminhando para um cenário em que o líder chinês Xi Jinping vai ter controle total — rumo a uma era em que pouca informação vai chegar ao Tibete, em que a língua tibetana vai ser compartilhada pouco", diz Barnett.
"A educação escolar vai ser quase inteiramente voltada para festivais chineses, virtudes chinesas, cultura tradicional chinesa avançada. Estamos falando da gestão completa da contribuição intelectual."
A estrada para Aba ostenta o dinheiro que Pequim investiu neste canto remoto do mundo. Uma nova linha ferroviária de alta velocidade circunda as colinas, ligando Sichuan a outras províncias do planalto.
Em Aba, as tradicionais lojas de rua que vendem vestes de monges e pacotes de incenso, ganharam a companhia de novos hotéis, cafés e restaurantes para atrair turistas.
Os antigos monastérios de Aba agora estão atraindo mais turistas chineses
Xiqing Wang/ BBC
Os turistas chineses chegam com seus equipamentos de caminhada de marca e ficam admirados, enquanto os fiéis locais se prostram em tacos de madeira na entrada dos templos budistas.
"Como eles conseguem fazer alguma coisa o dia todo?", pergunta um turista em voz alta. Outros giram as rodas de oração com entusiasmo, e perguntam sobre os coloridos murais que retratam cenas da vida de Buda.
Um slogan do partido escrito na beira da estrada se vangloria de que "pessoas de todos os grupos étnicos estão tão unidas quanto as sementes de uma romã".
Mas é difícil não notar a vigilância generalizada.
O check-in em um hotel exige reconhecimento facial. Até mesmo a compra de gasolina exige várias formas de identificação, que são mostradas para câmeras de alta definição. Há muito tempo a China controla as informações às quais seus cidadãos têm acesso – mas nas áreas tibetanas, o controle é ainda mais rigoroso.
Os tibetanos, diz Barnett, estão "isolados do mundo exterior".
Um monge passa pelo monastério de Langcuo Ma
Xiqing Wang/ BBC
O sucessor 'certo'
É difícil dizer quantos deles sabem sobre o anúncio feito pelo Dalai Lama na quarta-feira — transmitido para o mundo, mas censurado na China.
Vivendo no exílio na Índia desde 1959, o 14º Dalai Lama tem defendido mais autonomia, em vez de independência total, para sua terra natal. Pequim acredita que ele "não tem o direito de representar o povo tibetano".
Ele entregou a autoridade política em 2011 a um governo no exílio escolhido democraticamente por 130 mil tibetanos ao redor do mundo — e esse governo manteve negociações de bastidores com a China neste ano sobre o plano de sucessão, mas não está claro se houve avanço.
O Dalai Lama já havia sugerido anteriormente que seu sucessor viria do "mundo livre", ou seja, de fora da China. Na quarta-feira, ele disse que "ninguém mais tem autoridade para interferir".
Isso prepara o terreno para um confronto com Pequim, que disse que o processo deveria "seguir rituais religiosos e costumes históricos, e ser tratado de acordo com as leis e regulamentações nacionais".
Os tibetanos na China têm acesso muito restrito à informação
Xiqing Wang/ BBC
Pequim já está fazendo o trabalho de base para convencer os tibetanos, diz Barnett.
"Já existe um enorme aparato de propaganda em vigor. O Partido tem enviado equipes a escritórios, escolas e vilarejos para ensinar as pessoas sobre as 'novas regras' para a escolha do Dalai Lama."
Quando o Panchen Lama, a segunda maior autoridade do budismo tibetano, morreu em 1989, o Dalai Lama identificou um sucessor para essa posição no Tibete. Mas o menino desapareceu. Pequim foi acusada de sequestrar a criança, embora insista que o menino, agora adulto, está em segurança. Em seguida, aprovou um Panchen Lama diferente, que os tibetanos fora da China não reconhecem.
Se houver dois Dalai Lamas, isso pode se tornar um teste para o poder de persuasão da China. Qual deles o mundo vai reconhecer? Mais importante ainda, será que a maioria dos tibetanos na China saberia da existência do outro Dalai Lama?
A China quer um sucessor verossímil — mas talvez ninguém muito verossímil.
Porque, segundo Barnett, Pequim "quer transformar o leão da cultura tibetana em um poodle".
"Ela quer remover coisas que considera arriscadas e substituí-las por coisas que acredita que os tibetanos deveriam estar pensando: patriotismo, lealdade, fidelidade. Eles gostam dos cantos e da dança — a versão Disney da cultura tibetana."
"Não sabemos o quanto vai sobreviver", conclui Barnett.
Muitos tibetanos acreditam que seu modo de vida está sendo corroído pelo controle chinês
Xiqing Wang/ BBC
Mulheres tibetanas sentadas em volta de uma roda de oração em monastério
Xiqing Wang/ BBC
Ao sairmos do monastério, uma fila de mulheres carregando cestas pesadas cheias de ferramentas para construção e agricultura, passa pela sala das rodas de oração, girando-as no sentido horário.
Elas cantam em tibetano e sorriem ao passar, com seus cabelos grisalhos e plissados sob seus chapéus de Sol.
Os tibetanos têm mantido sua identidade por 75 anos, lutando por ela e morrendo por ela.
O desafio agora vai ser protegê-la, mesmo quando o homem que personifica suas crenças — e sua resistência — tiver partido.
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